O terraplanismo, apesar de ser uma teoria desacreditada pela ciência há séculos, tem encontrado adeptos entre alguns cristãos modernos. Muitos argumentam que a Bíblia ensina uma visão de mundo baseada em uma Terra plana, mas essa interpretação ignora princípios fundamentais da exegese reformada e a revelação geral de Deus na criação. Neste artigo, vamos refutar essa teoria à luz da teologia reformada, destacando a importância da revelação geral e especial, bem como a correta interpretação das Escrituras.
A Revelação Geral e a Ciência
A teologia reformada reconhece que Deus se revela de duas formas: pela revelação especial, que é a Escritura, e pela revelação geral, que é a criação (Sl 19:1; Rm 1:20). Ambas não podem se contradizer, pois provêm do mesmo Autor. A ciência, quando corretamente compreendida, é uma ferramenta dada por Deus para explorar e entender o mundo que Ele criou. João Calvino, em suas Institutas da Religião Cristã, defendia que a criação manifesta a glória e a ordem de Deus, e que o uso adequado da razão é um dom divino.
A observação científica tem demonstrado, sem margem para dúvidas, que a Terra é esférica. Desde a Antiguidade, filósofos como Aristóteles já haviam notado a curvatura da Terra por meio da sombra projetada na Lua durante eclipses. Além disso, navegações e explorações modernas, bem como imagens de satélites, confirmam esse fato. Negar a esfericidade da Terra não é um ato de fé, mas sim de resistência ao conhecimento legítimo que Deus permitiu que o homem adquirisse.
A Interpretação Correta das Escrituras
Os terraplanistas frequentemente recorrem a versículos bíblicos, como Isaías 40:22 (“Ele é o que está assentado sobre o círculo da terra”), para tentar justificar sua posição. No entanto, há um erro exegético nessa abordagem. Primeiramente, a palavra hebraica “חֽוּג” (chug), traduzida como “círculo”, não significa um disco plano, mas uma forma esférica ou abobadada.
Além disso, as Escrituras usam frequentemente uma linguagem fenomenológica, ou seja, descrevem o mundo a partir da perspectiva humana e não com precisão científica. Por exemplo, passagens que falam sobre os “quatro cantos da terra” (Ap 7:1) não devem ser lidas de forma literalista, pois são expressões idiomáticas que representam a totalidade da criação. Da mesma forma, dizer que “o sol se põe” não significa que a Bíblia ensina que o sol gira em torno da Terra, mas apenas que descreve o mundo como ele é percebido pelo homem.
Os reformadores, como Calvino e Lutero, entenderam bem a necessidade de interpretar a Bíblia de maneira coerente com o seu contexto e com o restante da revelação de Deus. Calvino chegou a advertir contra uma leitura equivocada das Escrituras que rejeitasse o conhecimento científico legítimo.
A Doutrina da Providência e a Ordem da Criação
Outro problema teológico do terraplanismo é sua associação com teorias da conspiração que colocam em dúvida a ordem estabelecida por Deus na criação. Se a ciência e a tecnologia são dons divinos, então não faz sentido argumentar que há uma conspiração global para esconder a verdadeira forma da Terra. Isso implicaria que Deus teria permitido que toda a humanidade fosse enganada por séculos, sem motivo algum, o que vai contra a doutrina da providência divina (Hb 1:3).
Além disso, a crença de que existe um grupo obscuro controlando e ocultando a “verdade” contradiz a visão reformada da soberania de Deus sobre a história. Os reformadores ensinaram que Deus governa todas as coisas e que nada escapa ao Seu controle. Não há espaço, dentro da teologia reformada, para uma visão de mundo onde Deus permite que um engano dessa magnitude prevaleça entre os seus filhos sem razão.
Conclusão: O Globalista Reformado
A cosmovisão reformada nos ensina a amar a verdade, seja ela revelada na Escritura ou na criação. Um crente reformado globalista, no sentido correto da palavra, é aquele que reconhece a glória de Deus tanto na revelação especial quanto na revelação geral. Ele compreende que a Terra, criada por Deus, tem uma ordem estabelecida, e que negar essa ordem sem base sólida é cair no erro.
Portanto, o terraplanismo não apenas contraria a ciência legítima, mas também distorce as Escrituras ao forçar leituras equivocadas e rejeitar o conhecimento que Deus revelou. Como reformados, devemos nos apegar à verdade, seja na Palavra ou na criação, glorificando a Deus em todas as coisas (1 Co 10:31).
Globalista – Termo usado de forma irônica ou humorística por alguns para se referir a quem aceita a Terra como um globo.