A doutrina reformada é profundamente influenciada pela teologia de João Calvino e pela tradição protestante que se seguiu à Reforma Protestante do século XVI. Dentro deste arcabouço teológico, os conceitos de livre-arbítrio e livre agência têm uma posição central, especialmente em relação à soberania de Deus e à natureza humana após a Queda. O entendimento reformado desses termos é crucial para a compreensão de como os seres humanos podem agir moralmente e fazer escolhas significativas diante de Deus.
O Conceito de Livre-Arbítrio
O livre-arbítrio, na teologia reformada, é amplamente entendido em termos da capacidade humana de fazer escolhas morais, mas essa capacidade foi afetada radicalmente pela Queda de Adão. A Confissão de Fé de Westminster, um dos documentos confessionais centrais do pensamento reformado, declara que o homem, no estado de inocência, tinha o “poder e liberdade de vontade para fazer o bem e agradar a Deus” (CFW, IX.2). No entanto, após a Queda, a vontade humana ficou escravizada ao pecado, de modo que, fora da graça de Deus, o homem é incapaz de buscar ou fazer o bem espiritual. João Calvino argumenta, em sua obra Institutas da Religião Cristã, que o homem natural é espiritualmente morto, incapaz de buscar a Deus ou de realizar atos que sejam agradáveis a Ele (Efésios 2:1-3). Portanto, o livre-arbítrio do homem, no sentido pleno de ser capaz de escolher o bem espiritual por si mesmo, foi corrompido. O pecado original afeta todas as faculdades do ser humano, tornando sua vontade inclinada para o mal. Contudo, a doutrina reformada não nega que os seres humanos têm a capacidade de tomar decisões em sua vida cotidiana. O que é enfatizado é que, sem a regeneração operada pelo Espírito Santo, o ser humano é moralmente incapaz de escolher a Deus e, portanto, não tem livre-arbítrio em questões espirituais.
Livre Agência: O Papel da Vontade Humana
Embora o livre-arbítrio, no sentido de capacidade para o bem espiritual, tenha sido perdido, a doutrina reformada sustenta que os seres humanos ainda possuem livre agência. Isso significa que as pessoas continuam a fazer escolhas, agir e tomar decisões de acordo com seus desejos e inclinações. Mesmo após a Queda, a vontade humana não é coagida — ou seja, os seres humanos fazem o que desejam, mas seus desejos estão inclinados ao pecado. A doutrina reformada distingue, portanto, entre liberdade moral e liberdade natural. Liberdade natural refere-se à capacidade de escolher de acordo com os próprios desejos e inclinações, enquanto liberdade moral é a capacidade de escolher o bem espiritual. Após a Queda, a liberdade moral foi perdida, mas a liberdade natural permanece. Por isso, o homem age como agente moral, mas suas escolhas são sempre influenciadas por sua natureza pecaminosa (Romanos 8:7-8).
Soberania de Deus e Responsabilidade Humana
Um dos aspectos mais importantes da doutrina reformada é a crença na soberania absoluta de Deus. Deus é o criador e governante de todas as coisas, e Sua vontade é definitiva e inalterável. Isso levanta uma questão fundamental: se Deus é soberano sobre todas as coisas, como o ser humano pode ser responsável por suas ações? A resposta reformada encontra-se no conceito de concorrência divina. Embora Deus seja soberano e Seu plano seja determinado, Ele realiza Seu propósito por meio de ações livres e responsáveis dos seres humanos. As Escrituras ensinam que Deus ordena todas as coisas de acordo com Seu conselho eterno (Efésios 1:11), mas também afirmam a responsabilidade humana (Tiago 1:13-14). Portanto, na visão reformada, o ser humano age de acordo com sua própria vontade — ele é um agente livre — mas essa vontade está subordinada ao plano soberano de Deus. Em termos simples, Deus é a causa primária de tudo o que acontece, mas o homem é a causa secundária, responsável por seus próprios atos.
Regeneração e Restauração do Livre-Arbítrio
A doutrina da eleição ensina que Deus, em Sua misericórdia, escolhe alguns para a salvação, regenerando-os pelo Espírito Santo. Esse ato de regeneração é visto como uma restauração da liberdade moral perdida. Aqueles que são regenerados são capacitados a escolher o bem, a buscar a Deus e a seguir Suas leis. A Confissão de Fé de Westminster explica que “quando Deus converte o pecador e o transfere para o estado de graça, Ele o liberta de sua escravidão natural ao pecado e, pela graça, o capacita a querer e a fazer o bem espiritualmente” (CFW, IX.4). Essa restauração da vontade livre, no entanto, não é completa até que o crente seja glorificado. Durante a vida presente, o crente ainda luta contra o pecado e experimenta o conflito entre a carne e o Espírito (Romanos 7:22-23). Porém, há uma diferença fundamental: o crente regenerado tem o poder de resistir ao pecado e de escolher o bem, algo que o homem não regenerado não pode fazer.
Conclusão
A doutrina reformada apresenta uma visão complexa do livre-arbítrio e da livre agência. O livre-arbítrio, no sentido de capacidade de escolher o bem espiritual por si mesmo, foi perdido na Queda. No entanto, o homem ainda possui livre agência, agindo de acordo com suas inclinações. A soberania de Deus não anula a responsabilidade humana, mas antes a estabelece de maneira compatível. A regeneração restaura parcialmente o livre-arbítrio, capacitando os eleitos a viver de maneira que agrade a Deus. Essa doutrina ressoa profundamente com a centralidade da graça na teologia reformada, destacando que é Deus quem opera tanto o querer quanto o realizar, conforme Sua boa vontade (Filipenses 2:13).